SERRA DO MUCAMBO
por José Plínio de Oliveira*
A cartografia da palha em outras
eras estendida na região do atual município de Conceição do Coité, ainda
possibilita a leitura de fragmentos do estoque linguístico das oralidades
coiteenses que revelam a extensão ocupada pelos povos nativos, os índios, que
viveram nesta terra muito antes da chegada do colonizador europeu. Nesta
perspectiva de leitura, as tribos indígenas orientavam-se para espaços em que era
possível encontrar água, materiais para abrigo e caça em abundância. Foi assim
que uma parte da Nação dos Tocós tomou lugar bem ao pé do que hoje
é conhecida como a Serra do Mucambo, ocupando
depois imensas áreas deste território do sertão da Bahia, na proporção em que
as famílias iam se tornando mais numerosas e carecendo de maiores espaços para
os assentamentos das proles. Pode-se afirmar com segurança que um povo nobre
tomou assento nesse lugar. Daí se depreende que a serra não é apenas um
acidente geográfico nas terras deste Sertão
dos Tócos, mas um marco de referência da parte em que viveu por eras
remotas a civilização mais elevada deste contexto do semiárido baiano.
Convém esclarecer que o termo Mucambo é uma variante da palavra Mocambo
– do léxico brasileiro – que significa lugar em que se refugiavam nas matas e
nas áreas de caatingas escravos de origem africana, saídos dos grilhões do
cativeiro para a liberdade. Logo, dizer Mucambo,
neste contexto contemporâneo, implica pensar que em algum momento da história os
espaços que asseguraram sustentabilidade às populações indígenas nativas dos
sertões da Bahia, acolheram depois a povos de origem africana e lhes
asseguraram liberdade. Portanto, quando se trata da Serra do Mucambo, cujo nome indígena foi perdido, prevalece agora o
espaço atribuído também ao povo africano, inserido no coração do universo
indígena da Bahia.
A Serra do Mucambo, situada na imensa área de caatinga da região do
distrito de Salgadália, no município de Conceição do Coité, é um santuário
ecológico ímpar no âmbito do bioma caatinga e neste contexto do sertão da
Bahia. Uma serra solitária e aprazível em plena harmonia com o meio e com a
paisagem. Aquele que a comtempla de certa distância (por exemplo, ela é
avistada do distrito de Bandiaçu, nesse mesmo município, por quem trafega pela
BA 409, que liga a BR 116 em Serrinha ao município de Monte Santo) não consegue
ter nenhuma ideia da sua exuberante cobertura vegetal, contando com espécies raríssimas
de uma flora não encontrada em outro espaço do universo catingueiro, e com
notáveis características de espécies muito típicas da Mata Atlântica brasileira. É uma espécie de oásis surpreendente em
um contexto mesológico em que ele seria impossível, até mesmo pelas condições
climáticas predominantes nesta região. Parece que aquele santuário ecológico é
protegido pela natureza contra a sanha implacável de predadores. Árvores muito
altas, bromélias e flores exóticas, e rochas coroadas de musgos viçosos
extasiam o visitante que empreende longos percursos sob as copas frondosas das
árvores, sem nenhuma percepção do mais tênue raio de sol. E ainda persiste uma
atmosfera úmida e fria no interior da mata da Serra do Mucambo, mesmo quando no meio ambiente da caatinga a
canícula é asfixiante. A providência ecológica soube protege-la com tanto desvelo
e por tanto tempo que somente agora – muito felizmente – neste início do século
XXI é que a ONG Flor da Caatinga,
iniciativa de alguns membros da comunidade de Salgadália, começa a tratar dela
como um patrimônio ambiental sustentável. E tem razão porque a Serra do Mucambo é também um marco sustentável
por excelência da memória da civilização da palha que por eras muito remotas
viveu nesta parte do Nordeste do Brasil.
Com a civilização dos Tocós, esta terra foi sendo harmonizada
e conhecida em sua natureza e suas nuances peculiares. Foi assim que as
populações nativas organizaram os períodos da caça, de tal forma que aqueles
recursos jamais viessem a ser exauridos, mas remanejados sempre em harmonia com
a natureza e com necessidades do homem. Dessa forma, a geografia dos recursos
de sustento daquela civilização era de-
marcada pelas bacias dos rios Irapiranga,
Cariacá, Jacurici e Itapicuru, de onde a caça descambava para o Jacuípe.
O Rio Jacuípe, de águas de
coloração aurífera e curso volumoso – naquela demanda ecológica – funcionava
como um centro agregador natural das espécies da fauna abundante naqueles
tempos selváticos. É que esse rio, situado entre as matas de caatingas e as florestas majestosas da
Chapada e da parte do mar, ainda tendo com anteparo o Rio Paraguaçu; nas
estações propícias; tanto atraía a espécies de animais chapadeiros e litorâneos quanto aos das caatingas esturricadas pelo estio. Os de cá migravam para aquelas
paragens, atraídos pela abundância de alimentos e por melhores condições de
reprodução. Já as espécies da fauna do litoral e da Chapada vinham escapando
das estações muito frias e em busca do clima mais ameno predominante na grande
bacia do Jacuípe. Portanto, o caçador nativo podia operar uma seleção mais
diversificada e mais adequada às necessidades do seu povo, sem nenhum prejuízo
para a natureza. Essa cultura da sustentabilidade indígena, em plena harmonia
com a Terra, perdurou por infinitas eras; até que chegou o homem branco.
A chegada do colonizador
europeu, de início, não causou grandes surpresas para a população indígena desta
parte do Planeta, quando aqui ele passou a circular em busca de riquezas
vegetais, jazidas de ouro, prata, diamante e outros materiais preciosos. Porque
o homem branco, para a mitologia indígena, corresponde a um mutante do próprio
índio. Isto é, um outro ser que surgiu do mesmo tronco genético do índio. Mesmo
o aparato tecnológico trazido pelo branco com requintes de superioridade, até
fascinando as populações nativas, deriva de uma tradição mítica de que nas
origens esses recursos também foram oferecidos pela Divindade Criadora aos índios. Eles tiveram a oportunidade de
escolha, bem como a de apropriação de recursos tecnológicos como machados,
foices, facas, facões, espingardas e outros produtos manufaturados que os
europeus passaram a ostentar como indicadores de superioridade perante os
índios. Nesta perspectiva de leitura, os índios teriam recusado esses dons ou
feito outras opções, pela natureza pura, pela civilização da palha, assim,
“O homem branco é
muitas vezes, no mito, um mutante indígena, alguém que
surgiu do grupo.
Frequentemente também, a desigualdade tecnológica, o mo-
nopólio de
machados, espingardas e objetos manufaturados em geral, que foi
dado aos brancos,
deriva, no mito, de uma escolha que foi dada aos índios. Eles
poderiam ter escolhido
ou se apropriado desses recursos, mas fizeram uma es-
lha equivocada.
...........................................................................................................................
“Para os Kawahiwa, os
brancos são os que aceitaram se banhar na panela fer-
vente de Bahira:
permaneceram índios os que recusaram (...). O tema recorren-
te que saliento é
que a opção, no mito, foi oferecida aos índios, que não são ví-
timas de uma
fatalidade mas agentes de seu destino. Talvez escolheram mal.
Mas fica salva
dignidade de terem moldado a própria história”. (CUNHA, 2008,
P. 18 – 19).
Portanto, quando os
colonizadores europeus passaram a desenvolver atividades econômicas nestas
terras, trazendo recursos tecnológicos e iniciando a criação de gado bovino;
dividindo estas terras sertanejas entre Garcia D’Ávila e Guedes de Brito, e
introduzindo vaqueiros com rebanhos a circular mais intensamente pelos sertões.
Fazendo abrir caiçaras em territórios
indígenas e estabelecendo fazendas de gado, depois transformadas em vilas e
muito mais adiante em cidades. Então é que começaram a surgir os conflitos
entre brancos e índios, principalmente quando os brancos passaram a tentar
escravizá-los; o que de certa forma até conseguiram.
No século XIX, com esta terra já
inteiramente sob domínio branco, teve início a construção da estrada de ferro
de Salvador a Juazeiro, do litoral ao sertão. Essa construção foi se
estabelecendo por etapas até que alcançou Serrinha, antigo domínio do português
Bernardo da Silva. Há muito Serrinha era cortada pela Estrada do Ouro que demandava de Salvador para Jacobina, mas isso
não afetava tanto a ecologia nativa porque a terra era de certa forma
preservada em sua compleição física. No entanto, quando a então localidade de
Serrinha veio a ser alcançada pela ferrovia, a vida indígena foi afetada de
forma drástica. E a harmonia daqueles povos nativos que viviam no entorno da Serra do Mucambo, na atual Salgadália, foi alterada de forma radical. Entretanto,
para as leituras de tendência desenvolvimentista,
“O traçado dessa
estrada de ferro – a primeira que se construiu na Bahia por
força da Lei nº
450, de 21 de junho 1852, sancionada pelo Vice-Presidente da
Província Alvaro
Tibério de Moncorvo Lima – traçado este que tanto benefici-
ou a região por
ela servida – devemo-lo, em grande parte, ao notável baiano,
senador do
Império Joaquim Jerônimo Fernandes da Cunha que lutou com
bravura contra
ponderáveis forças políticas que tentavam alterá-lo, desvian-
do-o de Juazeiro,
como ponto terminal, para outras cidades ribeirinhas.
“Não fossem a intervenção
inteligente e a tenacidade de Fernandes da Cunha,
certamente esta
parte do nordeste baiano teria sido prejudicada, pois até ela
não teriam
chegado os trilhos, permanecendo ali, ainda por tempo indefinido,
as velhas trilhas
abertas na caatinga pelos cascos das tropas e das boiadas.
.....................................................................................................................
“No início da
segunda metade do século XIX, no reinado de D. Pedro II, foram
projetadas duas
ferrovias: uma com destino a Minas Gerais e outra na Bahia,
unindo a Capital
da Província, vale dizer, o litoral ao majestoso rio São Francis-
co. A primeira
delas fora iniciada em 1854 com a tímida construção de, ape-
nas, 14
quilómetros, tendo surgido, nessa época, a primeira locomotiva do
Brasil e da
América Latina que passou a ser apelidada de Baroneza, em home-
nagem à esposa do
Barão de Mauá, Irineu Evangelista de Sousa – um dos
grandes
propulsores do progresso em nosso país. A segunda teria que ser na
Bahia, tendo sido
para isto celebrado contrato com a companhia inglesa Bahia
and
São Francisco Railway Company, de acordo com o Decreto nº 1.615 de
1855”. (MARQUES,
1997, P. 34 -35).
Bem a propósito do “traçado” da
primeira via férrea construída na Bahia, calcada nas pegadas dos primeiros
colonizadores que adentraram por estas plagas sertanejas, o escritor brasileiro
Euclides da Cunha afirma que:
“Calca, de
fato, estrada três vezes secular, histórica vereda por onde avança-
vam os rudes
sertanistas nas suas excursões para o interior.
“Não a alteraram
nunca.
“Não a variou, mais
tarde, a civilização, justapondo aos rastros do bandeirante
os trilhos de uma
via férrea.
“Porque o caminho em
cuja longura de cem léguas, da Bahia ao Juazeiro, se
entroncam
numerosíssimos desvios para o poente e para o sul, jamais compor-
tou, a partir de seu
trecho médio, variante apreciável para leste e para o norte.
“Calcando-o, em
demanda do Piauí, Pernambuco, Maranhão e Pará, os povoa-
dores, consoante
vários destinos, dividiam-se em Serrinha”. (CUNHA, 1979, p.
11).
Com
isso, o autor de Os Sertões pretende
dizer que os trilhos do caminho de ferro foram estabelecidos sobre o dorso da velha
estrada de chão, nascida de antiga vereda, certamente utilizada pelos povos
nativos em suas trajetórias nômades por estas terras e, muito depois,
apropriada pelo sertanista e pelo bandeirante quando iniciaram os primeiros
passos para a ocupação desta parte do continente sulamericano. “Não a alteraram
nunca”. E mais adiante a estrada “três vezes secular” vai receber os trilhos para
correr o trem de ferro. A mais sofisticada tecnologia em transportes de longas
distâncias naquele contexto histórico de Revolução
Industrial. Dessa forma, é muito curioso que “a civilização” industrial e
tecnológica tenha feito justapor trilhos de aço “aos rastros do bandeirante”. No
entanto, há um dado relevante a considerar:
Naquele início de construção da malha
ferroviária brasileira – além da mão-de-obra especializada vinda principalmente
da Europa – destaca-se a pessoa do eminente pensador e engenheiro civil
afro-baiano Teodoro Sampaio, também trabalhando naquele projeto. Homem sábio,
sensível e preocupado com os recursos de que agora tratamos ecológicos ou ambientais; naqueles tempos ditos mesológicos; argumentou e foi ouvido na perspectiva do
aproveitamento topográfico do antigo rumo da estrada. Ainda Teodoro Sampaio foi
responsável por grande parte da orientação recebida por Euclides da Cunha,
principalmente, sobre a flora e a fauna sertaneja para redigir a sua obra prima
Os Sertões. Até hoje não se sabe como
Teodoro Sampaio conseguiu manobrar a sanha implacável do capitalismo selvagem
para assegurar, pelo menos, a marca deste patrimônio tão remoto a esta
posteridade. Felizmente, “porque o caminho em cuja longura de cem léguas, da
Bahia ao Juazeiro, se entroncam numerosíssimos desvios para o poente e para o
sul”, é justamente a espinha dorsal que sustenta parte da memória identitária
da Bahia sertaneja. Convém lembrar que a atual Salvador era então denominada a
cidade da Bahia. Ora, certamente, uma estrada com tais características corresponde
sim à metáfora de uma coluna vertebral inteiriça com as suas vértebras
intactas. Estas, “os numerosíssimos desvios”, na verdade, vieram a funcionar como
estradas vicinais por onde carreiros, tropeiros e etc. demandavam produtos
desta região para embarques nas plataformas das estações de trem. Portanto, em
que pese a determinação positivista de Ordem
e Progresso que Teodoro Sampaio não teria condições de se opor naquele
contexto histórico; principalmente por suas convicções desenvolvimentistas; ainda
assim ele nos assegurou o legado da espinha dorsal da memória identitária
sertaneja, por onde pés ancestrais salpicaram de signos rudes a face agreste desta
parte do Brasil. Esta velha e sucateada estrada de ferro, que além de Bahia and São Francisco Railway Company,
foi denominada de Viação Férrea Federal
Leste Brasileiro, Rede Ferroviária
Federal Sociedade Anônima e agora Ferrovia
Centro Atlântico é o mais consistente sinal visível do patrimônio da nossa
Memória Sertaneja. Ela está impregnada de todas as contradições, mas também de
todo o apelo possível à consciência sertaneja na perspectiva da preservação
desta Memória.
Nesta perspectiva de estudo, é oportuno
lembrar que depois de haver transtornado as vidas humanas das populações
indígenas nativas destas terras, o trem de ferro foi responsável pela
devastação prolongada das nossas matas de caatinga. É que as caldeiras das
locomotivas – as máquinas que ipsis
litteris puxavam as composições de trens –, verdadeiros monstros de ferro,
devoravam a lenha extraída das matas sertanejas; além de sugar a água dos
nossos rios e açudes para produzir o vapor que era transformado em energia para
impulsionar aquela Serpente do Cabrunco,
a deslizar veloz sobre este chão. Para atender àquelas demandas devastadoras,
institui-se um comércio grotesco: nas estações da estrada de ferro havia um
espaço denominado o lenheiro,
destinado ao abastecimento das locomotivas e para onde lenhadores e fornecedores
contratados para aqueles serviços transportavam em carros-de-bois, lombos de
burros e de jumentos madeiras adequadamente cortadas para serem consumidas por
aquelas máquinas e, para tanto, empilhadas em grandes extensões ao longo dos
trilhos, para depois serem calculadas em metros cúbicos pelo agente da estação
e então remuneradas pela empresa. Por mais de um século a chamada Maria Fumaça devorou a nossa flora e
matou quase toda a nossa fauna, estraçalhada sobre os trilhos pelas rodas dos
vagões. Era – infelizmente – muito comum se encontrar animais silvestres mortos
ao longo da linha de trem; até mesmo o gado de criatório era dizimado. E até
vítimas humanas incontáveis foram dilaceradas pelas máquinas dos trens de
ferro.
Os índios da Nação Tocó da região da Serra do Mucambo escaparam por muito
pouco.
Era o tempo da caça e os homens
da tribo preparavam-se para seguir no rumo do lugar onde hoje está situada a
cidade de Riachão do Jacuípe, para o tempo da fartura nas áreas banhadas pelo
rio quando, na mesma época, começaram a chegar os trabalhadores para tocar o
avanço da linha de ferro.
A viagem dos caçadores e as
próprias ações de capturas e abates de animais, além da preparação natural para
longos tempos de transporte e de conservação – que consistia em arrumar
pacientemente em caçuás de pindoba as
camadas de carnes de caças, separadas por folhas de velame para garantia de longa conservação – demandavam muitas luas.
De tal sorte que os que deixavam as esposas gestantes, ao retornarem, encontravam
os curumins já engatinhando pelos
terreiros das malocas.
As mulheres inquietas assistiam
ao alongamento da estrada pelas mãos dos homens brancos. Os índios mais fortes
e mais preparados da tribo tinham ida à caça, somente ficaram as mulheres, os
velhos, as crianças e alguns poucos jovens ainda inexperientes. Há muitas eras
o povo se comportava assim. Mas agora ocorria o avanço da ameaça branca. Então,
o tempo corria sob grande apreensão para aquele povo Tocó e com pouco os homens da estrada começaram as espalhar os
trilhos de ferro e a fincá-los no chão. Aí teve início o desespero das
mulheres: o par de trilhos como duas lâminas estrangulando a terra, matava-a
lentamente. Além do que, as “facas grandes” estrangulariam o próprio povo.
Ninguém ousava aproximar-se delas. Somente de muito longe o movimento era
observado. Não se podia mais apanhar água nas fontes que ficaram apartadas
pelos trilhos; iam as mulheres em busca de outras alternativas de suprimentos,
coletando água nas moitas de gravatás,
mas logo começaram a dar à luz os seus rebentos. Assim a coleta da água ficava
tão arriscada, porque as locas subterrâneas das moitas de gravatás são habitat
natural de répteis, animais peçonhentos e até de feras.
Finda a temporada da caça, os
índios preparavam-se para retornar à aldeia distante, carregados de caçuás de carnes. Depois, fez-se a
marcha.
No princípio de uma tarde, o
velho pagé reuniu as mulheres: em três dias os caçadores estariam de volta. Daí
iniciou-se a vigília para que eles não se arriscassem nas “facas grandes”. Foi
um tormento. Até que na terceira manhã a fila de homens foi avistada. Teve
início a gritaria para que eles não atravessassem os trilhos. Os trabalhadores
já os espichavam para próximo de Santa Luzia e os caçadores interromperam a
marcha junto à margem esquerda de quem sobe para lá. Da margem direita, todo o
restante da tribo os contemplava; iniciando longo relato dos fatos ocorridos
durante as ausências. Ninguém jamais poderia atravessar aquelas “facas”. Elas
cortaram ao meio uma das nações mais nobres desta parte do Sertão de Canudos. E
foi assim que se fez um pacto sereno de separação em que ali se despediriam
para sempre. Todo o povo chorou muito. Não podia mais haver abraços, mas as
mulheres ergueram as crianças nascidas durante a estação da caça, e do outro
lado os homens estenderam as mãos para elas. Fez-se um silêncio de morte, já
sem lágrimas, sem gemidos, sem sussurros. A noite foi caindo e cada pessoa ia
se afastando como que recolhida por ela. As trevas foram se tornando mais
densas, e a noite muito mais calada. O silêncio das trevas foi tomando aquele
mundo, e quando surgiram os primeiros raios da Aurora não havia mais nenhum indício de que aquela terra fora
habitada por aquele povo.
Restaram somente os trilhos.
*PROFESSOR
DE LITERATURA NO DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS XIV DA UNIVERSIDA DE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB. EM CONCEIÇÃO DO COITÉ.
REFERÊNCIAS
BORGES, Jorge Luís . O cativo . In: O fazedor . 5. ed.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.
CÔRTES, Clelia Neri (org.) . De tempos em tempos: nossas histórias Kaimbé . Salvador: EDUFBA,
2010.
CUNHA, Euclides da . Os
sertões . 29. ed. Brasília:
Francisco Alves, 1979.
CUNHA, Manuela Carneiro da (org.) . História dos índios no Brasil . 2. ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 2008.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda . Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa .
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína (org.) . Usos e abusos da história oral . 7. ed.
Rio de Janeiro: FGV, 2005.
HERMIDA, Antonio José Borges . História do Brasil . 13. ed. São Paulo: Editora do Brasil, 1956.
MARQUES, Nonato . Uma
porta para Canudos . Salvador:
Bureau, 1997.
MONTAIGNE, Michel de . Dos canibais . In: Ensaios . v. 1. São Paulo: Nova
Cultural, 2000.
PREZIA, Benedito e HOORNAERT, Eduardo . Esta terra tinha dono . São Paulo: FTD,
1989.
Nenhum comentário:
Postar um comentário