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quinta-feira, 25 de outubro de 2012

SERRA DO MUCAMBO


                                                            SERRA DO MUCAMBO
                                                                                                     por  José Plínio de Oliveira*
                     
               A cartografia da palha em outras eras estendida na região do atual município de Conceição do Coité, ainda possibilita a leitura de fragmentos do estoque linguístico das oralidades coiteenses que revelam a extensão ocupada pelos povos nativos, os índios, que viveram nesta terra muito antes da chegada do colonizador europeu. Nesta perspectiva de leitura, as tribos indígenas orientavam-se para espaços em que era possível encontrar água, materiais para abrigo e caça em abundância. Foi assim que uma parte da Nação dos Tocós tomou lugar bem ao pé do que hoje é conhecida como a Serra do Mucambo, ocupando depois imensas áreas deste território do sertão da Bahia, na proporção em que as famílias iam se tornando mais numerosas e carecendo de maiores espaços para os assentamentos das proles. Pode-se afirmar com segurança que um povo nobre tomou assento nesse lugar. Daí se depreende que a serra não é apenas um acidente geográfico nas terras deste Sertão dos Tócos, mas um marco de referência da parte em que viveu por eras remotas a civilização mais elevada deste contexto do semiárido baiano.
              Convém esclarecer que o termo Mucambo é uma variante da palavra Mocambo – do léxico brasileiro – que significa lugar em que se refugiavam nas matas e nas áreas de caatingas escravos de origem africana, saídos dos grilhões do cativeiro para a liberdade. Logo, dizer Mucambo, neste contexto contemporâneo, implica pensar que em algum momento da história os espaços que asseguraram sustentabilidade às populações indígenas nativas dos sertões da Bahia, acolheram depois a povos de origem africana e lhes asseguraram liberdade. Portanto, quando se trata da Serra do Mucambo, cujo nome indígena foi perdido, prevalece agora o espaço atribuído também ao povo africano, inserido no coração do universo indígena da Bahia.     
               A Serra do Mucambo, situada na imensa área de caatinga da região do distrito de Salgadália, no município de Conceição do Coité, é um santuário ecológico ímpar no âmbito do bioma caatinga e neste contexto do sertão da Bahia. Uma serra solitária e aprazível em plena harmonia com o meio e com a paisagem. Aquele que a comtempla de certa distância (por exemplo, ela é avistada do distrito de Bandiaçu, nesse mesmo município, por quem trafega pela BA 409, que liga a BR 116 em Serrinha ao município de Monte Santo) não consegue ter nenhuma ideia da sua exuberante cobertura vegetal, contando com espécies raríssimas de uma flora não encontrada em outro espaço do universo catingueiro, e com notáveis características de espécies muito típicas da Mata Atlântica brasileira. É uma espécie de oásis surpreendente em um contexto mesológico em que ele seria impossível, até mesmo pelas condições climáticas predominantes nesta região. Parece que aquele santuário ecológico é protegido pela natureza contra a sanha implacável de predadores. Árvores muito altas, bromélias e flores exóticas, e rochas coroadas de musgos viçosos extasiam o visitante que empreende longos percursos sob as copas frondosas das árvores, sem nenhuma percepção do mais tênue raio de sol. E ainda persiste uma atmosfera úmida e fria no interior da mata da Serra do Mucambo, mesmo quando no meio ambiente da caatinga a canícula é asfixiante. A providência ecológica soube protege-la com tanto desvelo e por tanto tempo que somente agora – muito felizmente – neste início do século XXI é que a ONG Flor da Caatinga, iniciativa de alguns membros da comunidade de Salgadália, começa a tratar dela como um patrimônio ambiental sustentável. E tem razão porque a Serra do Mucambo é também um marco sustentável por excelência da memória da civilização da palha que por eras muito remotas viveu nesta parte do Nordeste do Brasil.    
               Com a civilização dos Tocós, esta terra foi sendo harmonizada e conhecida em sua natureza e suas nuances peculiares. Foi assim que as populações nativas organizaram os períodos da caça, de tal forma que aqueles recursos jamais viessem a ser exauridos, mas remanejados sempre em harmonia com a natureza e com necessidades do homem. Dessa forma, a geografia dos recursos de sustento daquela civilização era   de- marcada pelas bacias dos rios Irapiranga, Cariacá, Jacurici e Itapicuru, de onde a caça descambava para o Jacuípe.
               O Rio Jacuípe, de águas de coloração aurífera e curso volumoso – naquela demanda ecológica – funcionava como um centro agregador natural das espécies da fauna abundante naqueles tempos selváticos. É que esse rio, situado entre as matas de caatingas e as florestas majestosas da Chapada e da parte do mar, ainda tendo com anteparo o Rio Paraguaçu; nas estações propícias; tanto atraía a espécies de animais chapadeiros e litorâneos quanto aos das caatingas esturricadas pelo estio. Os de cá migravam para aquelas paragens, atraídos pela abundância de alimentos e por melhores condições de reprodução. Já as espécies da fauna do litoral e da Chapada vinham escapando das estações muito frias e em busca do clima mais ameno predominante na grande bacia do Jacuípe. Portanto, o caçador nativo podia operar uma seleção mais diversificada e mais adequada às necessidades do seu povo, sem nenhum prejuízo para a natureza. Essa cultura da sustentabilidade indígena, em plena harmonia com a Terra, perdurou por infinitas eras; até que chegou o homem branco.
               A chegada do colonizador europeu, de início, não causou grandes surpresas para a população indígena desta parte do Planeta, quando aqui ele passou a circular em busca de riquezas vegetais, jazidas de ouro, prata, diamante e outros materiais preciosos. Porque o homem branco, para a mitologia indígena, corresponde a um mutante do próprio índio. Isto é, um outro ser que surgiu do mesmo tronco genético do índio. Mesmo o aparato tecnológico trazido pelo branco com requintes de superioridade, até fascinando as populações nativas, deriva de uma tradição mítica de que nas origens esses recursos também foram oferecidos pela Divindade Criadora aos índios. Eles tiveram a oportunidade de escolha, bem como a de apropriação de recursos tecnológicos como machados, foices, facas, facões, espingardas e outros produtos manufaturados que os europeus passaram a ostentar como indicadores de superioridade perante os índios. Nesta perspectiva de leitura, os índios teriam recusado esses dons ou feito outras opções, pela natureza pura, pela civilização da palha, assim,

                          “O homem branco é muitas vezes, no mito, um mutante indígena, alguém  que
                            surgiu do grupo. Frequentemente também, a desigualdade tecnológica, o   mo-
                            nopólio de machados, espingardas e objetos manufaturados em geral, que    foi
                            dado aos brancos, deriva, no mito, de uma escolha que foi dada aos índios. Eles
                            poderiam ter escolhido ou se apropriado desses recursos, mas fizeram uma  es-
                            lha equivocada.
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                           “Para os Kawahiwa, os brancos são os que aceitaram se banhar na panela     fer-
                           vente de Bahira: permaneceram índios os que recusaram (...). O tema  recorren-
                           te que saliento é que a opção, no mito, foi oferecida aos índios, que não são   ví-
                           timas de uma fatalidade mas agentes de seu destino. Talvez escolheram      mal.
                           Mas fica salva dignidade de terem moldado a própria história”. (CUNHA,    2008,
                           P. 18 – 19).  
   

               Portanto, quando os colonizadores europeus passaram a desenvolver atividades econômicas nestas terras, trazendo recursos tecnológicos e iniciando a criação de gado bovino; dividindo estas terras sertanejas entre Garcia D’Ávila e Guedes de Brito, e introduzindo vaqueiros com rebanhos a circular mais intensamente pelos sertões. Fazendo abrir caiçaras em territórios indígenas e estabelecendo fazendas de gado, depois transformadas em vilas e muito mais adiante em cidades. Então é que começaram a surgir os conflitos entre brancos e índios, principalmente quando os brancos passaram a tentar escravizá-los; o que de certa forma até conseguiram.
               No século XIX, com esta terra já inteiramente sob domínio branco, teve início a construção da estrada de ferro de Salvador a Juazeiro, do litoral ao sertão. Essa construção foi se estabelecendo por etapas até que alcançou Serrinha, antigo domínio do português Bernardo da Silva. Há muito Serrinha era cortada pela Estrada do Ouro que demandava de Salvador para Jacobina, mas isso não afetava tanto a ecologia nativa porque a terra era de certa forma preservada em sua compleição física. No entanto, quando a então localidade de Serrinha veio a ser alcançada pela ferrovia, a vida indígena foi afetada de forma drástica. E a harmonia daqueles povos nativos que viviam no entorno da Serra do Mucambo, na atual Salgadália, foi alterada de forma radical. Entretanto, para as leituras de tendência desenvolvimentista,

                              “O traçado dessa estrada de ferro – a primeira que se construiu na Bahia    por
                              força da Lei nº 450, de 21 de junho 1852, sancionada pelo Vice-Presidente   da
                              Província Alvaro Tibério de Moncorvo Lima – traçado este que tanto  benefici-
                              ou a região por ela servida – devemo-lo, em grande parte, ao notável   baiano,
                              senador do Império Joaquim Jerônimo Fernandes da Cunha que lutou        com
                              bravura contra ponderáveis forças políticas que tentavam alterá-lo,    desvian-
                              do-o de Juazeiro, como ponto terminal, para outras cidades ribeirinhas.
                              “Não fossem a intervenção inteligente e a tenacidade de Fernandes da Cunha,
                              certamente esta parte do nordeste baiano teria sido prejudicada, pois até   ela
                              não teriam chegado os trilhos, permanecendo ali, ainda por tempo indefinido,
                              as velhas trilhas abertas na caatinga pelos cascos das tropas e das boiadas.
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                              “No início da segunda metade do século XIX, no reinado de D. Pedro II,   foram
                              projetadas duas ferrovias: uma com destino a Minas Gerais e outra na    Bahia,
                              unindo a Capital da Província, vale dizer, o litoral ao majestoso rio São Francis-
                              co. A primeira delas fora iniciada em 1854 com a tímida construção de,     ape-
                              nas, 14 quilómetros, tendo surgido, nessa época, a primeira locomotiva        do
                              Brasil e da América Latina que passou a ser apelidada de Baroneza, em  home-
                              nagem à esposa do Barão de Mauá, Irineu Evangelista de Sousa – um          dos
                              grandes propulsores do progresso em nosso país. A segunda teria que ser    na
                              Bahia, tendo sido para isto celebrado contrato com a companhia inglesa Bahia
                              and São Francisco Railway Company, de acordo com o Decreto nº 1.615       de
                              1855”. (MARQUES, 1997, P. 34 -35).  

         
               Bem a propósito do “traçado” da primeira via férrea construída na Bahia, calcada nas pegadas dos primeiros colonizadores que adentraram por estas plagas sertanejas, o escritor brasileiro Euclides da Cunha afirma que:

                         “Calca, de fato, estrada três vezes secular, histórica vereda por onde       avança-
                           vam os rudes sertanistas nas suas excursões para o interior.
                           “Não a alteraram nunca.
                           “Não a variou, mais tarde, a civilização, justapondo aos rastros do    bandeirante
                           os trilhos de uma via férrea.
                           “Porque o caminho em cuja longura de cem léguas, da Bahia ao Juazeiro,   se
                           entroncam numerosíssimos desvios para o poente e para o sul, jamais  compor-
                           tou, a partir de seu trecho médio, variante apreciável para leste e para o norte.
                           “Calcando-o, em demanda do Piauí, Pernambuco, Maranhão e Pará, os    povoa-
                           dores, consoante vários destinos, dividiam-se em Serrinha”. (CUNHA, 1979,     p.
                           11).    
   
                       
                   Com isso, o autor de Os Sertões pretende dizer que os trilhos do caminho de ferro foram estabelecidos sobre o dorso da velha estrada de chão, nascida de antiga vereda, certamente utilizada pelos povos nativos em suas trajetórias nômades por estas terras e, muito depois, apropriada pelo sertanista e pelo bandeirante quando iniciaram os primeiros passos para a ocupação desta parte do continente sulamericano. “Não a alteraram nunca”. E mais adiante a estrada “três vezes secular” vai receber os trilhos para correr o trem de ferro. A mais sofisticada tecnologia em transportes de longas distâncias naquele contexto histórico de Revolução Industrial. Dessa forma, é muito curioso que “a civilização” industrial e tecnológica tenha feito justapor trilhos de aço “aos rastros do bandeirante”. No entanto, há um dado relevante a considerar:
              Naquele início de construção da malha ferroviária brasileira – além da mão-de-obra especializada vinda principalmente da Europa – destaca-se a pessoa do eminente pensador e engenheiro civil afro-baiano Teodoro Sampaio, também trabalhando naquele projeto. Homem sábio, sensível e preocupado com os recursos de que agora tratamos ecológicos ou ambientais; naqueles tempos ditos mesológicos; argumentou e foi ouvido na perspectiva do aproveitamento topográfico do antigo rumo da estrada. Ainda Teodoro Sampaio foi responsável por grande parte da orientação recebida por Euclides da Cunha, principalmente, sobre a flora e a fauna sertaneja para redigir a sua obra prima Os Sertões. Até hoje não se sabe como Teodoro Sampaio conseguiu manobrar a sanha implacável do capitalismo selvagem para assegurar, pelo menos, a marca deste patrimônio tão remoto a esta posteridade. Felizmente, “porque o caminho em cuja longura de cem léguas, da Bahia ao Juazeiro, se entroncam numerosíssimos desvios para o poente e para o sul”, é justamente a espinha dorsal que sustenta parte da memória identitária da Bahia sertaneja. Convém lembrar que a atual Salvador era então denominada a cidade da Bahia. Ora, certamente, uma estrada com tais características corresponde sim à metáfora de uma coluna vertebral inteiriça com as suas vértebras intactas. Estas, “os numerosíssimos desvios”, na verdade, vieram a funcionar como estradas vicinais por onde carreiros, tropeiros e etc. demandavam produtos desta região para embarques nas plataformas das estações de trem. Portanto, em que pese a determinação positivista de Ordem e Progresso que Teodoro Sampaio não teria condições de se opor naquele contexto histórico; principalmente por suas convicções desenvolvimentistas; ainda assim ele nos assegurou o legado da espinha dorsal da memória identitária sertaneja, por onde pés ancestrais salpicaram de signos rudes a face agreste desta parte do Brasil. Esta velha e sucateada estrada de ferro, que além de Bahia and São Francisco Railway Company, foi denominada de Viação Férrea Federal Leste Brasileiro, Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima e agora Ferrovia Centro Atlântico é o mais consistente sinal visível do patrimônio da nossa Memória Sertaneja. Ela está impregnada de todas as contradições, mas também de todo o apelo possível à consciência sertaneja na perspectiva da preservação desta Memória.
               Nesta perspectiva de estudo, é oportuno lembrar que depois de haver transtornado as vidas humanas das populações indígenas nativas destas terras, o trem de ferro foi responsável pela devastação prolongada das nossas matas de caatinga. É que as caldeiras das locomotivas – as máquinas que ipsis litteris puxavam as composições de trens –, verdadeiros monstros de ferro, devoravam a lenha extraída das matas sertanejas; além de sugar a água dos nossos rios e açudes para produzir o vapor que era transformado em energia para impulsionar aquela Serpente do Cabrunco, a deslizar veloz sobre este chão. Para atender àquelas demandas devastadoras, institui-se um comércio grotesco: nas estações da estrada de ferro havia um espaço denominado o lenheiro, destinado ao abastecimento das locomotivas e para onde lenhadores e fornecedores contratados para aqueles serviços transportavam em carros-de-bois, lombos de burros e de jumentos madeiras adequadamente cortadas para serem consumidas por aquelas máquinas e, para tanto, empilhadas em grandes extensões ao longo dos trilhos, para depois serem calculadas em metros cúbicos pelo agente da estação e então remuneradas pela empresa. Por mais de um século a chamada Maria Fumaça devorou a nossa flora e matou quase toda a nossa fauna, estraçalhada sobre os trilhos pelas rodas dos vagões. Era – infelizmente – muito comum se encontrar animais silvestres mortos ao longo da linha de trem; até mesmo o gado de criatório era dizimado. E até vítimas humanas incontáveis foram dilaceradas pelas máquinas dos trens de ferro.
              Os índios da Nação Tocó da região da Serra do Mucambo escaparam por muito pouco.          
               Era o tempo da caça e os homens da tribo preparavam-se para seguir no rumo do lugar onde hoje está situada a cidade de Riachão do Jacuípe, para o tempo da fartura nas áreas banhadas pelo rio quando, na mesma época, começaram a chegar os trabalhadores para tocar o avanço da linha de ferro.
              A viagem dos caçadores e as próprias ações de capturas e abates de animais, além da preparação natural para longos tempos de transporte e de conservação – que consistia em arrumar pacientemente em caçuás de pindoba as camadas de carnes de caças, separadas por folhas de velame para garantia de longa conservação – demandavam muitas luas. De tal sorte que os que deixavam as esposas gestantes, ao retornarem, encontravam os curumins já engatinhando pelos terreiros das malocas.
               As mulheres inquietas assistiam ao alongamento da estrada pelas mãos dos homens brancos. Os índios mais fortes e mais preparados da tribo tinham ida à caça, somente ficaram as mulheres, os velhos, as crianças e alguns poucos jovens ainda inexperientes. Há muitas eras o povo se comportava assim. Mas agora ocorria o avanço da ameaça branca. Então, o tempo corria sob grande apreensão para aquele povo Tocó e com pouco os homens da estrada começaram as espalhar os trilhos de ferro e a fincá-los no chão. Aí teve início o desespero das mulheres: o par de trilhos como duas lâminas estrangulando a terra, matava-a lentamente. Além do que, as “facas grandes” estrangulariam o próprio povo. Ninguém ousava aproximar-se delas. Somente de muito longe o movimento era observado. Não se podia mais apanhar água nas fontes que ficaram apartadas pelos trilhos; iam as mulheres em busca de outras alternativas de suprimentos, coletando água nas moitas de gravatás, mas logo começaram a dar à luz os seus rebentos. Assim a coleta da água ficava tão arriscada, porque as locas subterrâneas das moitas de gravatás são habitat natural de répteis, animais peçonhentos e até de feras.
               Finda a temporada da caça, os índios preparavam-se para retornar à aldeia distante, carregados de caçuás de carnes. Depois, fez-se a marcha.
               No princípio de uma tarde, o velho pagé reuniu as mulheres: em três dias os caçadores estariam de volta. Daí iniciou-se a vigília para que eles não se arriscassem nas “facas grandes”. Foi um tormento. Até que na terceira manhã a fila de homens foi avistada. Teve início a gritaria para que eles não atravessassem os trilhos. Os trabalhadores já os espichavam para próximo de Santa Luzia e os caçadores interromperam a marcha junto à margem esquerda de quem sobe para lá. Da margem direita, todo o restante da tribo os contemplava; iniciando longo relato dos fatos ocorridos durante as ausências. Ninguém jamais poderia atravessar aquelas “facas”. Elas cortaram ao meio uma das nações mais nobres desta parte do Sertão de Canudos. E foi assim que se fez um pacto sereno de separação em que ali se despediriam para sempre. Todo o povo chorou muito. Não podia mais haver abraços, mas as mulheres ergueram as crianças nascidas durante a estação da caça, e do outro lado os homens estenderam as mãos para elas. Fez-se um silêncio de morte, já sem lágrimas, sem gemidos, sem sussurros. A noite foi caindo e cada pessoa ia se afastando como que recolhida por ela. As trevas foram se tornando mais densas, e a noite muito mais calada. O silêncio das trevas foi tomando aquele mundo, e quando surgiram os primeiros raios da Aurora não havia mais nenhum indício de que aquela terra fora habitada por aquele povo.
               Restaram somente os trilhos.

       
*PROFESSOR DE LITERATURA NO DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS XIV DA UNIVERSIDA DE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB. EM CONCEIÇÃO DO COITÉ. 
              
                         
                                                           REFERÊNCIAS  
BORGES, Jorge Luís . O cativo . In: O fazedor . 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.
CÔRTES, Clelia Neri (org.) . De tempos em tempos: nossas histórias Kaimbé . Salvador: EDUFBA, 2010.  
CUNHA, Euclides da . Os sertões . 29. ed.  Brasília: Francisco Alves, 1979.
CUNHA, Manuela Carneiro da (org.) . História dos índios no Brasil . 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda . Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína (org.) . Usos e abusos da história oral . 7. ed. Rio de Janeiro:  FGV, 2005.
HERMIDA, Antonio José Borges . História do Brasil . 13. ed. São Paulo: Editora do Brasil, 1956.
MARQUES, Nonato . Uma porta para Canudos . Salvador:  Bureau, 1997.
MONTAIGNE, Michel de . Dos canibais . In: Ensaios . v. 1. São Paulo: Nova Cultural, 2000.
PREZIA, Benedito e HOORNAERT, Eduardo . Esta terra tinha dono . São Paulo: FTD, 1989.